Para Deleuze arte é alegria, ou há alegria na obra de arte, ou então não é obra de arte. Arte é sempre alegre mesmo os dramas e tragédias. Ele nos diz que o tema pode ser feio, pode ter qualidade aterrorizante, desesperadora, quase repugnante … Mas tudo isso é estranhamente varrida pela alegria da obra de arte. Nenhum artista, continuam dizendo Deleuze, nem mesmo o mais desesperado, produziu uma obra de arte sem sentir essa estranha alegria do ato de criação.
Não tenho dúvida, a gestação do livro O CORTADOR DE HÓSTIAS produziu está estranha alegria em sua autora. Este livro é um romance trágico. Dawn produziu um romance a partir de temas dolorosos: violência infantil e abandono. Ela conseguiu narrar com traços poéticos uma tragédia, nos oferecendo uma leitura envolvente, numa linguagem elegante e de narrativa ousada. Acompanho a produção da escritora há algum tempo, e posso afirmar que existe uma maturidade na escrita de Clara neste livro. Vários aspectos revelam isso, em comparação com as obras anteriores, é possível perceber está metamorfose na estrutura narrativa e na erudição da escritora.
O texto dessa tragédia é constituído de muitas vozes , múltiplas vozes se fazem presentes, seja em frase incríveis que lembra alguns filósofos sentenciando máximas para a vida, seja nas epígrafes [poesias] de abertura das partes do livros. Só para exemplificar, numa narrativa de Venceslau, ela escreveu: “quando não se tem sonhos, é mais cômodo viver o sonho alheio. Não se pode ter sonhos … quando se é abandonado” e, ela segue a fala de Venceslau, “tudo que o inferno representa está contido na palavra abandono”. E de fato, o abandono é infernal, pois, muitas vezes, por sua intensidade retira da pessoa até a possiblidade de sonhar e, por isso, ela pode até desistir da vida e deixar de resistir e lutar contra as adversidades fruto do abandono. Numa elegância impressionante a autora vai tecendo sua trama.
O romance de Clara Dawn não tem diálogos, é composto por quatro narradores, quatro vozes falando de forma intercalada: Flor Maria narra sua desventuras da vida; Venceslau, descreve suas dores e dramas existências, que são confissões de um homem apaixonado, num drama entre a fé e o pecado; um narrador observador externo, que faz as vezes de um contador de história, narrando as reações dos personagens e descrevendo os ambientes, situações e contextos da trama; e, por fim, os fragmentos dos depoimentos do Cortador de hóstias a um delegado invisível e mudo.
Os depoimentos do Cortador de Hóstias apesar da brevidade são impactantes, pois dão náuseas nos leitores mais sensíveis. Clara Dawn com um bisturi revela as entranhas de uma mente doentia do pedófilo. Ela mostra a maquinaria mental dessa criatura abominável, seus desejos e taras, revelando sua alma apodrecida e dissimulada, que se escondia socialmente, no ofício de cortador de hóstias, um homem religioso. Ele era na verdade um ser desprezível, não tinha nem nome, era apenas o cortador de hóstias, o filho do diabo. Era um pai sem nome. Flor Maria nos diz: Minha mãe o chamava de Nó.
“Eu nunca quis saber o que significava Nó. Um homem que vende as próprias filhas não deve mesmo merecer um nome”.
Não nomear o seu carrasco era também uma estratégia de resistência, não humanizar o monstro. Podemos afirmar que este romance de Clara Dawn é um ato de resistência, um grito de alerta, para afirmar que existe vida mesmo depois de uma tragédia. Além de não nomear o carrasco como ato de resistência, Flor Maria encontrou na leitura uma forma de resistir, para não desistir, da brutalidade de sua vida. Leitura como refúgio. O próprio Machado de Assis, em Memórias Póstumas, escreveu que “o leitor não se refugia no livro, senão para escapar à vida”. Nas leituras Flor Maria escapava das dores, nelas vivia outras vidas, num tipo de rota de fuga, num Ato de resistência. O leitor acompanha a história, os delírios e sonhos de Flor Maria. Apesar de se tratar de uma história eivada de tristeza, existe um estranha alegria na leitura da obra.
A grandeza do livro de Dawn está na sutileza e delicadeza de sua escrita. Ela conta uma história violenta e brutal sem violentar seus leitores, mas, isso não significa que o leitor não sinta as dores e os sofrimentos dos personagens, pelo contrário, sente uma dupla afecção, por um lado, sente as dores de Maria e, por outro, a força da Flor. Afinal, a fortaleza da Flor Maria não estava em não sentir dor, mas em resistir, em lutar, em seguir, pois como diz a autora: “Forte não é ser imune à dor, mas seguir adiante apesar de sentí-la”.
Crítica feita pelo professor de filosofia Clever Fernandes