Quem foi que aumentou o volume desse silêncio agudo que ecoa por todos os cantos do casarão? Construído no século XVII e ornado com mobília francesa, a caixinha de música é a peça mais cara do lugar. Nem a cristaleira estilo Luís XV ou a mesa em Art Nouveau possuem valores mais estimados. Ora, a bailarina dança ao som de “Pour Elise” de Beethoven, numa sonoridade parecida com o xilofone. Harmonia perfeita para embalar os sonhos. Mas a caixinha está com as cordas frouxas agora. Num canto qualquer, emudeceu sua cantarola e a bailarina está mortificada numa cova ao lado de sua pátina dançante.
Sim, ‘ouço’ esse plácido cenário nas linhas da minha imaginação enquanto uma voz que já era velha conhecidas antes de eu nascer me faz um show particular na solidão vespertina de um dia atípico e pachorrento, este 17 de março de 2016. Na tela da televisão – num Canal ligado para fugir deste dia inquietação política – uma homenagem ao aniversário de existência de Elis Regina mostra a sua última apresentação na TV naquela madrugada de dezembro de 1981. E ela canta:
“Me deixas louca/ quando escuto o som alegre do teu riso/ que me dá tanta alegria/ me deixas louca…/ E quando sinto que teus braços se cruzaram em minhas costas/ Desaparecem as palavras/ Outros sons enchem o espaço/ Você me abraça, a noite passa/ E me deixas louca”.
Pessoas com um dom assim deveriam ser eternas. Ouço Elis Regina como alguém que acaba de descobrir, no sótão do casarão, um tesouro encantado. Sinto-me envergonhada quando me dou conta de que ouvi-la é novo para mim. Uma vergonha sem razão de ser, mas é como se eu tivesse ignorado, até então a cantora brasileira que pessoa alguma não deve passar a vida sem ouvir. Por isso, me apresso em apresentá-la à minha filha. Esta já se habituou ao meu entusiasmo infantil diante do passado/presente dos meus achados fortuitos. Mania besta essa minha de gostar de sentir a ausência do que não pertence ao meu tempo, de sentir ciúmes do que nunca foi meu, de ter inveja da saudade que não é minha; de um tempo que jamais vivi.
Não sei precisar o que mais me fascina. Se a voz melodiosa, se o arranjo, a letra ou o sorriso acriançado de Elis Regina numa ascensão quase voluptuosa – graças ao YouTube – eternizando “Me deixas louca” de 1981. Eu, certamente nesse ano, embalava os sonhos da primeira infância e a única coisa que me deixava louca era levar a culpa das travessuras dos irmãos mais velhos.
Do casarão construído no século XVII, herdei a única coisa que sempre me interessou – a caixinha de música.Hoje, digo adeus Beethoven com sua canção “para Elise”, porque na minha caixinha de música coloco a imagem de Elis Regina bailando sem parar, encantando a minha vida e me deixando louca.
Texto de Clara Dawn