A escritora Clara Dawn traz consigo o dom da escrita, ou da escritura literária. A letra ao pé da letra, a escrita escorreita e correta para se narrar uma história e/ou tecer crônicas destacam os fios de seu talento estético. Traz senso de leveza e medida, noção do que seja subjetividade criativa, com sensibilidade poética. Sim, o cronista enquanto poeta do cotidiano, além da reflexão sobre fatos corriqueiros (ou insólitos) que se narram.
Cronistas há que escrevem apenas pelos cinquenta ou não sei quantos reais por crônicas de lauda e meia, algumas delas medíocres, para não dizer intragáveis — qualquer coisa sem alma ou empatia com os temas. Por excelência, cabe ao cronista sublinhar o contorno das coisas, o que elas tragam de interessante. Captar a essência do banal ou mesmo extrair alguma epifania das supostas insignificâncias, pois tudo significa alguma coisa. Epifania ou insight no sentido joyciano — manifestações súbitas, quer na vulgaridade do discurso ou do gesto, ou em uma fase memorável da própria mente… “São os momentos mais delicados e evanescentes” —, ou de captar a luminosidade e ser surpreendido pelas “grandezas do ínfimo”, ao jeito do poeta Manoel de Barros. Mas aqui não se trata de crônicas ou cronistas e nem de poemas, mas sim de romances.
Romancista, contista e cronista — além de pedagoga, com pós-graduação em Psicopedagogia —, Clara Dawn, com efeito, lavora no campo da literatura e publica desde 2008, ao lançar seu primeiro romance, “Alétheia” — que, em grego antigo, quer dizer verdade/realidade, ou, segundo Heidegger, após análise etimológica do termo a-letheia: a- (negação) e lethe (esquecimento): tentativa de compreensão da verdade/desvelamento. Ah, como somos pernósticos!
“O Cortador de Hóstias” é o mais recente livro de Clara Dawn, com o selo da Editora Livres Pensadores, da qual a autora é diretora-executiva, atuando também como produtora de conteúdo da revista “Raízes — Jornalismo Cultural”, que tem como editor-chefe seu marido, o jornalista Doracino Naves. Entre outros livros de Clara estão “Sofia Búlgara” e o “Tabuleiro da Morte” (crônicas), ”Castelo de Bolso” (infantil) e “Arthur o Grande Urso” (infantil).
Nuanças/sutilezas e, contudo, a diferença. Não que se esteja ou queira aqui fazer — e já fazendo — leigas especulações comparativas; instigante, todavia, a humana curiosidade a certo cotejamento/confronto de semelhanças e diferenças, similitudes, ecos ou ressonâncias. Venho de ler, paralelamente, “O Cortador de Hóstias” (154 páginas), de Clara Dawn, e “O Cortador de Pedras” (“The Stonecutter”, com 447 páginas), da escritora Camilla Läckberg — sueca, ela tem romances policiais, best-sellers, traduzidos para 35 idiomas e vendidos em 50 países.
Camilla Läckberg assina obras como “A Princesa de Gelo” (2003), “Gritos do Passado” (2004), “O Estranho” (2012), “Os Diários Secretos” (2007), “A Sombra da Sereia” (2008) e, dentre outras, “O Faroleiro” (2011) — as datas se referem aos anos de publicação na Suécia —; algumas delas traduzidas e publicadas no Brasil a partir de 2010. “O Cortador de Pedras” (“Stenhuggaren”, em sueco) foi publicada em 2005, na Suécia, e apenas (que saibamos) em 2011, no Brasil.
É de se notar que, segundo declarações de Clara Dawn à imprensa, “O Cortador de Hóstias”, primeiramente com o título “O Vale das Quimeras”, se iniciou em 2010, ambientado em Ouro Preto (MG) e no ano de 1975. Nas palavras da autora, era para ser um livro com três contos longos, aparentemente distintos, mas que traziam a lume a mesma história, narrada por diferentes personagens. A história girava em torno de uma suposta sucuri, no Vale das Quimeras, que, em noites sem lua, arrastava crianças para o fundo do rio, após abusar delas sexualmente. (Nada a ver uma coisa com outra, mas as coisas umas às outras se levam, como nos leva a sucuri, por analógica digressão nossa, à Anaconda mostrada pelo cinema ou a Yara?).
Senão, vejamos: sobreditos romances sob um certo rastreamento. Em 2010, Clara escrevia “O Vale das Quimeras”. No ano seguinte, 2011, “O Cortador de Pedras”, de Camilla Läckberg, saía publicado no Brasil; e, já em 2012, o romance de Clara Dawn, em andamento, sofre uma guinada após a conversa da autora com um amigo, que lhe apresentou a máquina de cortar hóstias. “Pronto! Fiquei louca pela ideia de dar voz ao meu assassino de crianças”, palavras de Clara à imprensa. E assim mudou-se o título do romance para “O Cortador de Hóstias”, e mudou-se o locus, de Ouro Preto, em Minas Gerais, para a Pirenópolis de 1918, em Goiás.
A autora, provavelmente, se baseia num antigo aparelho cortador de hóstias, que funcionava manualmente, por meio de prensagem e corte. Ao que se sabe, a hóstia é feita com farinha e água. A massa da hóstia — com os ingredientes misturados numa prensa quente — resulta no pão ázimo, o “Corpo de Cristo” dos católicos, sendo este cortado em vários tamanhos. Com a massa já prensada e seca, colocada na superfície do mecanismo de ferro afixada sobre a caixa de madeira do cortador, processava-se o corte e as hóstias iam caindo na gaveta do aparelho.
Consta que as aparas, sobras ou retalhos de hóstias, cheios de círculos perfurados, serviam para alimentar porcos. Meio herético ou profano, isso, não? No passado, recortavam-se as hóstias até com tesoura. Atualmente, indústrias com tecnologia moderna atendem à demanda de hóstias, com data de validade que varia de oitos meses a dois anos.
Mas, sim, prosseguindo com nossas conjecturas, o título do romance de Clara Dawn, “O Vale das Quimeras”, foi então substituído por “O Cortador de Hóstias”. Pois bem. Por suposto que Clara, nesse ínterim, entre 2010 e 2011, teria lido (ou não?) o romance de Camilla Läckberg, podendo então que o título de seu romance se tenha como ressonância de “O Cortador de Pedras”. Ou então Clara não leu o romance sueco e tenha apenas se espelhado no título de Camilla? Ou nada disso e simplesmente porque as ideias estão no ar e o novo título do romance tenha vindo ao contato de Clara com o aparelho cortador de hóstias? Não checamos isso com Clara; optamos pelo risco de exercitar a humana curiosidade e nossas (talvez improváveis) considerações.
Corrija-nos, a autora, se aqui estivermos alicerçados apenas em leigas e meras suposições, até porque “literatura comparada” (ou lá o que seja) não é nossa especialidade — para isso (abre indelicado parêntesis) temos por aí os mestres abalizados, ainda que entre eles haja algum bípede enfunado, atarracado na arrogância do saber e segundo o qual, com suas idiossincráticas e acintosas indiretas, quase tudo que se escreve em Goiás, no campo da literatura, é ruim. Crítico de quinta coluna, de bastidores e boicotes. Mal sabe do que sabemos, em nosso parco saber, até por bocas de Matildes, e do que guardamos para mais tarde, antes do advento do Apocalipse, com o asteroide em rota de colisão com a Terra. Haverá palmas e risos, choro e ranger de dentes. Antes disso, nada se conta, mas acrescentam-se dois pontos: era uma vez um enfunado, ensimesmado sapinho, que foi indo e mais se enfunou, até que, num belo dia, cheio de si, se arrebentou. (Fecha parêntesis.)
De passagem — e teremos que reler o romance de Clara, o que seguramente faremos, seja pela estrutura do romance, pela técnica literária da autora, pela linguagem e suas imagéticas, pela densidade das personagens ou pela escabrosa atmosfera do romance, enfim —, não vimos bem, na personagem Flor Maria, uma Benedicta Cypriano (dita Santa Dica, ou Dindinha) às avessas, conforme declaração da autora. Nem seria mero esboço nesse viés ao avesso da messiânica Benedicta, um fato dos anos 1920, ao passo que a história do cortador de hóstias se ambienta em 1918, dois anos antes, portanto. E não é esse o eixo do romance “O Cortador de Hóstias”. De resto, o que sabemos?
Quanto às ressonâncias, nem há por que se encrespar, são naturais em muitos escritores (em nós mesmos, admitimos), inclusive na crítica, nos contos e romances dos próprios críticos (inclusos os sapinhos). De mais a mais, não se é dono das palavras, são elas de domínio público, não exclusivas deste ou daquele autor, salvo quando elas expressam, nítida e inconfundivelmente, a forma ou estilo peculiar, inerente e criativo, ao jeito de quem as formula de modo original. Peculiaridade essa, aliás, passível de se tornar clichê estereotipado em mãos de terceiros e até banalizar e diluir autoria de ideias originais — daquele outro autor, e não de quem delas se apropria, usurpa, repete/redunda ou “mimetiza”, até de forma involuntária (pois sim!), senão que desatento ou automaticamente traído pelo inconsciente. Orai e vigiai-vos, diríamos. Ou melhor: vigiemo-nos. Numa escala classificatória de autores, Ezra Pound distingue os “mestres” (os melhores) dos apenas “bons escritores, sem qualidades proeminentes”, e distingue dos “inventores”, os meros “diluidores”, que não vão além de suas limitações, parcos recursos, mediano intelecto.
Algumas ressonâncias de supostas leituras (ou nem se trata disso) encontramos, de forma indelével, no novo romance de Clara Dawn. Ao “cortador de hóstias”, ela apõe como epíteto “o filho do diabo”, que nos lembra um título de Bukowski, e mais adiante se refere a “anjos e demônios”, ecoando romance da “onda” Dan Brown, além de dar a perceber também uma sombrazinha de influência do escabroso de pelo menos um ou dois conhecidos autores goianos, que, por sinal, já “contaminaram” prosa e poesia em Goiás, até de críticos sapinhos.
Comparativamente, há elementos e claras similitudes ou similaridades ou semelhanças (apraz-nos encadear sinônimos e aliterações) entre as estruturas e atmosferas de ambos os romances. A propósito, e por mais exemplo entre muitos outros “naturais” (como dizíamos), lendo-se o romance “A Mulher de Costas”, de Marcia Tiburi, vai-se “ouvindo”, repetidamente, que a personagem Maria José é “nascida e renascida”, adendo este que ressoa parte homonimamente intitulada no inventivo e fascinante romance “Avalovara”, de Osman Lins, em que este qualificativo (“nascida e renascida”) se aplica a uma de suas personagens.
Já o título “O Cortador de Pedras”, alusivo a um cortador de blocos de granito e escultor, não nos parece adequado a toda a trama do romance de Camilla Läckberg, salvo que por algum sentido metafórico que nos tenha escapado. Durante a leitura, fica-se focado na expectativa com esse cortador de pedras — espécie de elemento a pretexto de toda a trama —, e meio que se frustra o espectador com as revelações (maestria de Camilla), embora já viéssemos (dedutivos psicossensores) com nossas suspeitas, recaindo sobre o verdadeiro assassino, como se confirma. (Ainda nos anos 1950, quase 1960, em Uberlândia/MG, influídos pelas histórias de crime, mistério e suspense, meio que iniciamos ou intentamos um curso de detetive particular, por correspondência, com o renomado professor Bechara Jalkh, do instituto que leva seu nome, sediado no Rio de Janeiro; e até ajudamos a polícia civil de Uberlândia nas investigações e prisão de uns golpistas e maconheiros que se hospedaram na pensão de nossa tia Rosa). O cortador de pedras, na verdade, não vem a ser o centro ou eixo na trama da escritora sueca, e não se conecta senão como involuntário leitmotiv (motivo condutor ou de ligação) com os fatos que ocorrem em Fjälbacka, pequena e idílica cidade, onde a própria Camilla Läckberg nasceu. O assassino aí se move por razões bem mais profundas, em traumas de infância enraizados no fundo do tempo, logo pertinentes ao campo da psiquiatria.
Assassinato da menina Sara (entre outros), rede de pornografia infantil, pedofilia, abusos sexuais e suicídio, conflitos de vizinhos, espancamento de mulheres, adultério, esposas infelizes, abandono de filhos, planos de vingança, atos escabrosos e culpas do presente e do passado (entre os anos de 1924 e 1962) vão surgindo na trama de “O Cortador de Pedras”, com o crime investigado pelo detetive Patrick Hedstrom. Algo similar, em aspectos, se dá no romance de Clara Dawn. No aspecto das revelações finais, é menor o impacto no romance de Clara do que na trama de Camilla Läckberg, típica autora de best-sellers, com obras propícias ao cinema (e o de Clara Dawn também, por que não?), como, aliás, força do gênero, parece ser o destino de certos best-sellers.
Estrutura, técnica narrativa, atmosfera, densidade, personagens e sondagens do ser humano. Semelhanças entre os dois romances em foco, com as respectivas diferenças que os sustêm e distingue. Em “O Cortador de Hóstias” os fatos se narram por conta de três personagens e por um narrador fazendo às vezes do autor. O romance é composto em quatro partes, a começar pela personagem Flor Maria, tomada pelo ódio e desejo de vingança por causa dos traumáticos abusos sexuais sofridos na infância. Outra parte mostra o reverendo Venceslau que escreve cartas, jamais enviadas, para sua amada (Flor Maria) supostamente morta. Cartas dentro de uma caixa que esteve enterrada durante anos, e uma delas guardando segredo que será oportunamente revelado. A terceira parte corre por conta do narrador que vai alinhavando toda a trama do romance, e para o qual “coisa alguma é o que parece ser”. Já numa parte à parte (ou quarta parte), ganha autonomia narrativa um suposto cortador de hóstias, molestador de garotinhas e que, em depoimento ao delegado, busca inocentar-se do crime de morte das crianças. Inocentes indefesas, que teriam sofrido abusos nos fundos escuros da bestialidade, onde o vulto monstruoso insinuava-se à luz de lamparina.
Assim, “O Cortador de Hóstias” constitui um quebra-cabeça de variadas visões, e nele o escabroso se abre com um cheiro de querosene (a lamparina), frutas em decomposição e odor de chiqueiro. Ao longo do romance, vão se folheando abusos sexuais cometidos pelo cortador de hóstias contra meninas negras, abobalhadas, com algum defeito físico, abandonadas pelos pais ou vendidas para serem exploradas sexualmente. Assassinato de crianças e até um incêndio na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, como realmente ocorreu, em data mais recente, em Pirenópolis. Há no livro messiânicas religiosidades e intentos de suicídio coletivo por parte do reverendo, meio que ao modo de Jim Jones, na década de 1970, na Guiana, próxima à fronteira com a Venezuela — e seria por aqui, talvez (não por Flor Maria), o avesso dos objetivos de Santa Dica, a Benedicta de Lagolândia, um povoado de Pirenópolis. E o romance revela, finalmente, uma Flor Maria que, dada como morta, retorna, vinte anos depois, para se vingar. Mestria de Clara Dawn.
Por sua vez, “O Cortador de Pedras”, de Camilla Läckberg, se abre com a morte da menina Sara, que um pescador de lagosta descobre ao puxar sua rede com a pesca do dia. O suposto afogamento acidental, no mar, cai por terra quando a autópsia revela que a água encontrada no corpo da menina não é salgada e possui traços de sabão, o que leva a suspeita de um assassinato em Fjällbacka. Adiante, se descobre que Sara foi criminosamente afogada na banheira de sua casa, inclusive sendo forçada a engolir uma certa quantidade de cinzas. Coisa macabra, pois se trata de cinzas dos mortos, de pessoas assassinadas pelo principal suspeito, e pelo mesmo carbonizadas numa casa propositalmente incendiada. Similitudes elementais, como se vê, entre um romance e outro, além da proximidade de datas em que ambas as tramas se iniciam: em 1924, os fatos do romance de Camilla; em 1918, os fatos narrados por Clara. A exemplo, enquanto no romance da autora sueca se fala de uma reveladora caixa azul com as cinzas dos mortos, no romance de Clara Dawn há uma caixa de cartas, entre elas um envelope carmim com a carta secreta e reveladora. Coisas assim e algo mais, comparativamente paralelas.
Ao fim, longe de nós o intento de subestimar (antes, atestar) o dom de Clara com a literatura, autora e obra que temos em boa consideração, e podendo até que, a outros pretextos, só estejamos aqui a nos exibir (ah, meu Deus, outro conto de sapinho?) como leitores inveterados e atentos. Aos críticos e teóricos do assunto, a tarefa da análise aprofundada e o abalizado esclarecimento. A nós, particularmente, que transitamos mais pela superfície da matéria, e antes alicerçados na diferença do que nas supostas ressonâncias, nada temos que desabone “O Cortador de Hóstias”, o qual realmente apreciamos e cuja leitura recomendamos. Leiam o novo e envolvente romance de Clara Dawn.