Literatura

Crônica lírica de ficção: Mulher de areia

E a areia escapou pelos vãos dos meus dedos… Embora eu imaginasse que jamais escaparia, pois havia travado os dedos em figa, numa sofreguidão consciente. Em figa mesmo, para dar sorte.

Deveria tê-la segurado com o dedo médio em riste, porque, assim, quando a volúvel areia vazasse, já teria um gesto preparado para lhe mostrar.

Os sonhos são feitos de areia? Ou será que a areia é composta de milhares de grânulos sonhadores?

Engraçado… Eu tive um sonho de areia. Foi naquele dia em que construí um belo castelo coeso com areia e salsugem. Precisava mostrar a mim mesmo com quantos grânulos sonhadores se constrói a vivência surreal de um palácio encantado.

Enquanto erguia o meu castelinho, os grânulos chamaram minha atenção… Cada uma das pequenas saliências perceptíveis na superfície áspera conhecida como areia. Minúsculas pedras que chamamos de grãos. Bilhões de grãos juntos, porém separados, num eterno vaivém erótico regido pelas ondas do mar.

Diminutos e arredondados corpos, finamente lapidados por açoites marítimos, cobrem as praias num estado de constante frenesi, causado pela fricção das marés. Os grânulos de areia acariciados pelo mar se transformam em praia.

A visualização dessa imagem me fez sorrir interiormente, por razões inimagináveis para aqueles que apenas leem o texto, enquanto eu também toco os grânulos do teclado do meu computador. Os grânulos tecnicistas, tamborilados pela ânsia dos meus dedos, se transformam em arte.

O suco da cana, liquidificado no engenho, ao evaporar a garapa, produz grânulos. A sacudidela da moenda e o calor do fogo transformam o caldo da cana em grânulos doces. Grânulos estimulados com voracidade e quentura convertem-se em açúcar. Será que é por isso que a paixão é doce?

No meu castelo de areia, no meu sonho de areia, havia uma mulher. Uma mulher de areia taciturna. Ela testemunhava os efêmeros conflitos entre a volúpia das ondas e a inconstância dos grânulos. A mulher tinha um olhar perdido na imensidão. Os homens que passavam por ela admiravam suas generosas curvas, mas era da eterna plenitude das crianças que a mulher gostava. Pois essas a enxergavam muito além de suas curvas: viam-na como se fosse um ser encantado.

A mulher chorou, mas suas lágrimas não diluíram seus grânulos corporais. As lágrimas secaram seu coração. Então ela olhou para o castelo, achou-o inútil e desejou que os ventos do norte a levassem para longe do palácio. Num repente, percebeu que a maré estava subindo e que, em breve, ela voltaria a ser o que era: um simples grânulo – um grão de areia.

Levada, fugiria dos ditames e seria apenas um elo obtuso e brilhante entre milhares. Poderia, sem culpa, escapar pelos vãos de muitos dedos e ser breve numa praia qualquer. Seria parte de uma areia branca, onde não adianta traçar planos nem deixar marcas, pois o vento e as ondas certamente as apagarão…

Então olhei para a areia que havia escapado pelos vãos dos meus dedos e que agora estava sob o meu corpo horizontal. Notei que ela estava molhada pelos beijos do mar… Aberta, sem segredos, sem anéis, pois estes foram levados pelos longos dedos das ondas. Sua face resplandecia os raios do sol e exibia um riso que a boca humana não sabe dar.

Ei-la, enxertada no granulado chão, numa inebriante e convidativa ternura. Eu a respeito, eu a admiro e levanto-me, deixando os contornos do meu híbrido arquétipo deleitados em seus grânulos como uma tatuagem. A maré subirá e levará consigo apenas essa minha irrelevante gravura. Levará todos os grânulos femininos do meu estigma, e esses serão tragados pelo mar… Depois disso, serei eu… Toda de areia.

Publicada originalmente sob o título: Castelo de areia, no jornal Diário da Manhã em 16 de janeiro de 2012

Clara Dawn

Escritora, psicanalista, especialista em "Prevenção aos transtornos mentais e ao suicídio na adolescência" e autora de 7 livros publicados.

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